SIADAP e a Enfermagem

 

Na base de qualquer sistema de saúde de qualidade estão os profissionais que o sustentam diariamente. Entre eles, os enfermeiros ocupam um lugar central: cuidam, previnem, educam e respondem às mais diversas necessidades da população. No entanto, quando chega o momento de avaliar o seu desempenho, o sistema atual revela falhas que não podem continuar a ser ignoradas. O SIADAP, sistema de avaliação de desempenho transversal à Administração Pública, é um modelo burocrático, genérico e desajustado à especificidade e complexidade da profissão de enfermagem.
Vivemos num tempo em que se proclama a meritocracia, a eficiência e o reconhecimento do desempenho. No entanto, continua-se a aplicar aos enfermeiros um instrumento avaliativo que não serve a sua realidade. O SIADAP ignora os contextos específicos, a exigência e especificidade do trabalho de enfermagem, a polivalência técnica e o esforço contínuo de atualização científica a que a profissão obriga. Como pode ser justo um sistema que avalia um enfermeiro da mesma forma que avalia um técnico administrativo?
Importa dizer com clareza: não somos contra a avaliação. Somos contra a sua má aplicação. Exigimos uma avaliação que compreenda, respeite e valorize a realidade concreta da enfermagem.
O SIADAP falha não por existir, mas por avaliar mal. E, ao fazê-lo, desgasta todos os intervenientes. A gestão de desempenho transformou-se numa tarefa burocrática tão pesada que os enfermeiros gestores veem-se privados de tempo para liderar, apoiar e desenvolver as suas equipas. Cumprir o processo tal como está definido, absorve tempo e energia desproporcionais, sem que se traduzam em ganhos reais de qualidade, motivação ou reconhecimento.
Avaliar é necessário, sim! Mas avaliar com justiça, conhecimento da prática e respeito pela singularidade da enfermagem é uma obrigação moral e política. Persistir num modelo que desmotiva, desgasta e distorce o valor do trabalho dos enfermeiros é mais do que uma falha técnica, é uma escolha política.
É, por isso, urgente mudar o paradigma da avaliação. É necessário repensar toda a lógica da gestão de desempenho à luz da missão, da responsabilidade e da natureza específica do trabalho de cuidar. Avaliar deve ser uma prática de corresponsabilidade, e não um ritual burocrático imposto. Precisamos de criar uma cultura onde o colaborador reconhece o seu papel ativo no processo, fornecendo evidências, refletindo sobre o seu desempenho e alinhando-se com os objetivos contratualizados. Mas também onde o avaliador, com competência e clareza, possa exercer uma liderança construtiva: identificar oportunidades de melhoria, dar feedback transparente e criar condições reais para o crescimento profissional do avaliado. Só assim faremos da avaliação um processo verdadeiramente partilhado, útil e transformador.
Um dos maiores desafios da enfermagem é mensurar o que é, por natureza, profundamente humano. A tentativa de reduzir o cuidado a objetivos SMART (específicos, mensuráveis, atingíveis, realistas e temporais) esvazia o que de mais valor temos na prática profissional: o olhar clínico, a empatia, a capacidade de adaptação e a resposta ética ao sofrimento humano. Não é por acaso que os enfermeiros resistem à lógica de uma avaliação padronizada: ela não reflete o que fazemos, nem como o fazemos.
A formação contínua é outro ponto central. A enfermagem exige atualização constante, científica e técnica, que muitas vezes é feita fora do horário de trabalho, com investimento pessoal e financeiro. Essa dedicação raramente é valorizada nas avaliações de desempenho. Ignorar este esforço é uma forma subtil de desvalorizar o profissionalismo e a excelência dos enfermeiros.
Para além disso, o SIADAP, tal como está, promove uma competitividade estéril num contexto onde deveria prevalecer o trabalho em equipa. Enfermeiros não competem entre si: colaboram e atuam com espírito de entreajuda. Um sistema que mede o desempenho com base em quotas tão restritivas desvirtua este espírito coletivo e gera tensão, frustração e desmotivação nas equipas: o oposto do que se pretende com qualquer processo de avaliação.
É fundamental que o Estado ouça os profissionais e os sindicatos que os representam. Precisamos de um sistema de avaliação digno, ajustado à prática, que reconheça o mérito individual sem minar o coletivo, e que valorize a formação contínua como elemento central do progresso e da qualidade dos cuidados. O modelo atual agrava a sensação de injustiça, compromete a motivação e intensifica o sentimento de desvalorização que tantos enfermeiros já sentem no seu dia a dia.
Avaliar é importante, mas mais importante ainda é avaliar com justiça, com verdade e com uma visão realista do que é ser enfermeiro em Portugal. O SIADAP, no seu formato atual, não serve. Um modelo que ignora a complexidade e a humanidade do trabalho dos enfermeiros não é neutro, é um obstáculo ao reconhecimento e à valorização profissional. E, por isso, precisa de mudar.
 

Enfermeira Sylvie Gomes
 
 
 
 
 
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