Vivemos a arrastar as chancas

O gasto direto do Estado-providência é visto como um entrave, uma “gordura” que empobrece o país. Em contrapartida, são premiadas as políticas que canalizam o erário público para empresas privadas

Os trabalhadores por conta de outrem ou em regime de autoemprego são a base da sociedade e representam a maioria da população.

A legislação laboral aplica-se à grande maioria dos residentes em Portugal. Ao longo dos anos, tem havido avanços pequenos, mas consecutivos, que melhoram a vida das pessoas. A sociedade beneficia com o progresso legislativo na proteção dos trabalhadores, promovendo simultaneamente uma melhor conciliação entre a vida familiar e profissional.

Após a Revolução Industrial, só em meados do século XIX foi possível aos trabalhadores organizarem-se em associações sindicais, com o objetivo de reivindicar melhores condições físicas no trabalho, salários dignos e, sobretudo, o maior ganho de sempre: o direito ao horário de trabalho — com hora de entrada e saída definidas. Em Portugal, esse direito começou a ser formalizado com o Decreto de 14 de abril de 1891, que estabeleceu a jornada de 8 horas para manipuladores de tabaco.

Hoje somos levados a acreditar que a flexibilidade ou adaptabilidade do horário de trabalho representa um avanço nos direitos laborais. No entanto, enfrentamos um dos maiores retrocessos civilizacionais, disfarçado sob uma ideia de modernidade e ausência de preconceitos.

Os grandes grupos económicos têm conseguido moldar a narrativa social: a vida resume-se ao trabalho. Seduzem-nos com bens de consumo que prometem status — o carro igual ao do jogador de futebol, as férias em hotéis de luxo, a casa de praia além da habitação principal. Tudo sob o lema “porque temos direito”. Mas para conquistar esses bens, trabalhamos cada vez mais e mesmo assim ouvimos que não produzimos o suficiente. Se não excedermos o contrato laboral, somos rotulados de preguiçosos e acusados de travar o progresso económico do país.

Se pararmos por um momento e refletirmos sobre quem realmente beneficia desta filosofia de viver para trabalhar, percebemos que são os grandes grupos económicos. Quanto mais produzimos, maiores são os seus lucros e o seu poder.

Foi neste contexto que nasceu a saúde pública e comunitária, no século XIX. As doenças debilitavam a população e causavam mortes precoces, o que comprometia a força laboral. Tornou-se essencial manter os trabalhadores saudáveis, não por altruísmo, mas porque as economias dependiam de uma mão de obra robusta e de uma população com maior esperança de vida. 

Hoje, as políticas sociais estão cativas desses mesmos grupos económicos. Dependem deles para financiamento de estruturas e campanhas. E, uma vez eleitos, os representantes políticos criam legislação que assegura o retorno desses investimentos, através dos impostos que pagamos por nos matarmos a trabalhar.

O gasto direto do Estado-providência é visto como um entrave, uma “gordura” que empobrece o país. Em contrapartida, são premiadas as políticas que canalizam o erário público para empresas privadas, mesmo que isso implique o aumento da dívida pública — ou seja, de todos nós.

Sabemos disto. Mas fingimos que não é connosco. Que é com “eles que mandam”. E continuamos a arrastar as chancas, assistindo a retrocessos dramáticos na legislação laboral.

Talvez seja mais uma estratégia de “vamos ver se cola e se se calam”. Se funcionar, avança-se. Caso contrário, diz-se que foi mal interpretado.

Nasce assim a ilusão da modernidade e o preço da produtividade.

 
Gorete Pimentel
 
 
 
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